Você acha que é papel da polícia militar fiscalizar o artesanato nas ruas?

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Bar da meia noite

Lá pelas sete da manhã, o carro chegou fazendo um barulho estranho e bem alto, acordando a galera que estava na sala. Todo mundo acabou dormindo depois de tanto trabalho, se amontoando nos dois sofás, no tapete e numas almofadas que estavam por ali.
Com todo aquele negócio de ter que ficar trabalhando até de madrugada, o pessoal já estava se achando em casa. A casa era do patrão, ele saiu de férias e deixou a chave com eles. Todos os dias se encontravam no bar onde tocava a banda de um dos integrantes do grupo de trabalho. A banda só se apresentava aos sábados por volta da meia noite.


 Um som muito rápido e pesado que deixava a rapaziada locona e pronta pra balada que rolava no subsolo depois que o bar fechava as portas. Era uma balada deles, não era aberta para o público.


A galera sempre ia numa feirinha de rua, ou melhor, calçada para tomar umas e tirar um lazer com idéas que fossem diferentes de trabalho, afinal quase todos se viam e se falavam praticamente todos os dias. Depois de muita cerveja conversa, iam seguindo o movimento até a hora do bar da meia noite, já que a feirinha também rola de sábado. Já faz um tempo que eles não aparecem por ali, um monte de polícia militar tem frequentado a feira e o povo não gosta de locais cheio de P.M, né?

 De qualquer forma, hoje não é sábado, não tem feirinha e o carro já foi silenciado e agora o estranho ronco do motor daquele Dodge velho todo enferrujado foi substituído por um rastaman denunciando "...but this is the rat race", era o bom e velho Bob Marley abrindo caminho pro punk rock que a gente ouve hoje em dia descendo as ladeiras com as pranchinhas de quatro rodas.


Assim que é bom começar o dia.
Logo que a música tomou conta do ambiente, já começaram a se aprontar para sair, afinal se acordaram, o dia tem que ser aproveitado.
Carlos tava de bike, então foi com seu parceiro de pedalada dar uma volta na cidade. Decidiram que iam pro lado do centro, ali sempre ficava o resto dos que estavam curtindo durante a noite. Já era umas nove horas, mas o pessoal não parecia querer saber de ir embora. Aqueles que ficaram provavelmente iriam continuar no segundo tempo.
-pra começar, a gente podia ir tomar um caldo de cana e comer uns pasteis na feira da Roosevelt.


Sugestão aceita, foram os dois para lá e encheram a barriga com alto teor de gordura e açúcar, o que deve ser suficiente para encarar esse feriado.
- O cara ali falou que vai rolar um som na casa do Pitu logo mais, tá a fim?
-Tá certo, vamos só passar lá no bar que eu deixei uma coisa na bolsa da guitarra.
- A guitarra tá lá?
- ensaiei anteontem e já larguei por ali pra amanhã. A gente encontra o Pitu na casa dele mais tarde.
Depois de dois pasteis e meio litro de caldo de cana, foi um tanto quanto cansativo a pedalada até o bar, mas  chegando lá eles deram um tempo, fizeram a digestão e foram para onde a muvuca já estava estabelecida. A casa do cara fica bem perto do bar, então deixaram as rodas e foram na caminhada. Quando tem som na casa do Pitu, o melhor é ir sem veículos e preparado para voltar de manhã daquele modelo. O irmão dele trabalha numa distribuidora de bebidas. Os dois são gêmeos e têm vinte e oito anos. Quando tinham quinze, fizeram um churrasco regado a litros e litros de caipirinha. Nessa época, o tio deles tinha acabado de abrir essa distribuidora e os irmãos pegaram uma caixa duma cachaça que ninguém conhecia. Depois que todo mundo já tinha se acabado de tanta manguaça, seu novo nome ficou sendo "Pitu", em homenagem à bebida do churrasco.

Os dois já haviam andado uns dez minutos quando viram três caras correndo em direção a eles com as roupas meio rasgadas, parecia que estava saindo fumaça de todos eles, um já não tinha mais camiseta e a cara preta de carvão. Assim que se encontraram, ficaram sem conseguir explicar direito o estado em que se encontravam, pois não conseguiam falar muito bem, estavam rouquíssimos. Depois de tomar um pouco de ar, um deles reconheceu Carlos do bar e explicou que a casa do Pitu havia pegado fogo.
-Algum idiota tentou acender a churrasqueira com querosene e largou a lata ali perto. 
Até aí, tudo bem, o problema é que derrubaram a churrasqueira que já caiu em cima da lata e espalhou querosene com fogo pelo quintal cheio de caixas de cachaça amontoada, prontas pro catador de papelão que passava lá uma vez por semana pegar. Já dá pra imaginar a fogueira que se formou por ali. O quintal fica entre a casa e a edícula onde fica a oficina da irmã do Pitu. Ela faz velas artesanais e vende numas lojinhas do centro. A churrasqueira estava numa área coberta da edícula, praticamente dentro da oficina. O fogo encontrou por ali em busca de mais combustível para alimentá-lo e encontrou um monte de parafina pedindo pra derreter.
-Vamos lá ajudar a galera, deve estar um inferno aquilo.
-Olha lá, até o bombeiro teve que aparecer, a coisa deve ter ficado feia mesmo, vamos lá!
Foi só dobrar a esquina que chegaram na rua , a casa era a terceira à direita. Estava um tumulto geral na rua, cheio de curioso olhando sem fazer nada para ajudar e torcendo para que aquele momento de tragédia quebrasse a monotonia que eram suas vidas vazias e tediosas.  
Assim que o caminhão entrou na rua, o bando de urubu abriu espaço e os bombeiros já foram logo tacando água pra todo lado. Dava até pra ver o fogo subindo no telhado quando a chuvarada artificial conseguiu, depois de uma meia hora, extinguir as labaredas. Ficou apenas uma fumaça terrível, um calor que não dava pra chegar perto. Se encontraram com Pitu, ele estava sentado na sarjeta com uma garrafa de vodka já pela metade, inconformado com tudo aquilo.
Agora, tudo que eles podiam fazer era esperar todos irem embora e começar a arrumar a casa. Já estava bem tarde quando começaram a limpar aquele desastre. havia muita gente pra ajudar, chegando mais a todo momento. A rua ficou tomada de voluntários e a festa foi transferida pro espaço público que ganhou umas duas churrasqueiras, vários barris cheios de gelo e água  prontos pra deixar bem geladas um monte de latinhas de cerveja arrecadado como parte do mutirão de reconstrução da casa do Pitu. Todos os instrumentos e equipamentos em geral pro som que estava prestes a começar junto com o churrasco continuavam por ali, então a galera já foi se posicionando em seus devidos lugares e conectando os cabos que o rock n' roll que vai rolar aqui vai direto. 
-Vai lá  em baixo falar pro Caio pegar o baixo e subir aqui logo que a banda dele já quer entrar.
-Tá certo, vou só passar no Chicão pra resolver aquela parada lá
-Não viaja, muleque, então deixa quieto que eu vou, tá tudo pronto já, vamos começar isso logo.
Foi quando Caio já apareceu com o baixo e foi atacando com uma funkeira nervosa pra animar aquela noite sinistra. A banda (Obrigado, não!) tinha mais uma guitarra, uma flauta transversal estilo Ian Anderson e uma batera de por qualquer vagabundo pra dançar. Começaram a detonar e logo já aglomerou a galera, todo mundo dançando, comendo e bebendo.
-Assim que devia ser em qualquer lugar. Se for tocar nas calçadas é provável que seja algemado e tenha seu equipamento confiscado. Esse prefeito vem proibindo arte de rua, agora. 
-Tá brincando! Que passa na cabeça de uma pessoa pra proibir arte. Ainda mais numa cidade cheia de podridão como a nossa. Aqui e agora pode tudo, a banda do Carlos vai tocar logo mais, vamo invadir o palco e tocar também, chega aí.
Ninguém tinha percebido, mas quatro quarteirões dali já estavam a caminho algumas viaturas policiais já preparados para acabar com aquela festa trágica cheia de gente bebendo, música alta e coisa e tal. Eles tinham um informante dentro do evento se comunicando ao vivo com as viaturas. O que eles não sabiam é que a galera tinha olheiros em toda redondeza com walkie-talkies ouvindo, inclusive toda conversa da polícia com o tal informante, que essa hora estava amarrado numa cadeira dentro da antiga casa abandonada da rua de baixo. Largaram ele por ali com mordaça e vendas com um som ligado razoavelmente alto tocando qualquer porcaria que o radio estivesse transmitindo.
A Polícia chegou, a banda continuou tocando, um pessoal foi até eles, descobriram que foi denunciado o barulho e não seria possível continuar com aquilo. Frente à situação imposta pelas autoridades, tudo foi desligado e todo mundo foi embora.
Duas horas depois, uma galera desceu até a casa abandonada pra questionar o traidor que estava dando a letra para a polícia.
-Então, safado, tô ligado quem tu é. Que merda que tu tava fazendo com os polícia? 
-Tu vai ter que me matar, senão te mato mais tarde.
-dá essa merda aqui - gritou Chicão, pegando uma machadinha que ele deixara na casa semana passada - me dá aquele caixote. Então, vai perder uns dedos até falar o bagulho, entendeu?
-Tenho nada pra ti - retrucou o informante cuspindo na cara do Chicão e rindo pra todo mundo.
-AAAAAHHHH!!!!!!Filho da puta!!!!!!AAAhh!!!!!Foi o Tenório, ele tá querendo a sua área pro filho dele comandar.
Chicão tirou uma pistola da cintura , deu um tiro na cabeça do idiota e saiu andando. Pegou o celular, chamou a rapaziada para uma reunião na casa dele imediatamente. Enquanto isso, o resto da turma dava um jeito de sumir com o corpo o mais rápido possível. Tacaram no porta-malas do carro do Contador, o Marinho pegou a moto e os dois foram pro mirante e esconderam o carro com um monte de pedaço de árvore da área e voltaram pra reunião. Chegando lá, todos os membros da empresa estavam presente. Eles se dividiram uns anos atrás, indo um terço pro sul, outro ficou ali no centro e outro na zona oeste da cidade, então eles começaram a ganhar muito mais dinheiro e problemas. Chicão é um dos fundadores e sempre se referia a aquilo (na época era apenas uma maneira que os três encontram de ganhar dinheiro) como "empresa", então hoje todo mundo fala desse jeito.
-Já tá toda a macacada reunida, vamo começar essa parada. Vocês sabem que aqui no centro a gente ficou no meio de dois bando de safado; um deles, o do Tenório, resolveu começar uma treta. Dessa vez eu não quero deixar nada pra esses filhos da puta se levantar depois, vamo acabar com esses cara pra sempre. Cada região vai voltar pro seu abrigo , reunir os canhão e voltar pra cá depois de amanhã às duas da manhã pra gente já começar.
-Então é isso memo, vamo reinar nessa cidade que é nossa.
Terminado tudo, cada terço da empresa foi pro seu devido lugar tomar as providências necessárias, afinal eles iriam precisar de muitas armas e em dois dias fica difícil comprar tanto poder de fogo suficiente pra não deixar ninguém desarmado no conflito.




Já estavam abrindo o Bar às nove esta noite. Matias, o dono do estabelecimento, achou que seria interessante fazer uma festa de arrecadação para a casa do Pitu, afinal todos gostavam de curtir sempre que rolava a barulheira que ele costumava fazer naquela casa velha. Carlos já estava a caminho com a galera da ONG, sempre fiel a qualquer coisa que envolvesse o aquele bar ou os Libertários, a banda do Carlos. Já que haverá uma vaquinha pro Pitu, todos fizeram questão de convidar (obrigar) todos os conhecidos pra festa porque ficar sem a casa do barulho não dá. O Pessoal quer arrumar rapidinho o destruição causada pelo fogo e começar a tocar logo.
Outra banda que gosta do Bar e já está chegando é a do Caio, Obrigado,não! Na verdade, as duas tem muito em comum, já que seus respectivos fundadores começaram juntos há dez anos atrás, tocando nos festivais de faculdade. O terceiro integrante do grupo, infelizmente sofreu um terrível acidente de para-quedas.


 Esse cara era um pouco exagerado com a dosagem de adrenalina diária. Além de tocar, gostava mesmo era de experiências extremamente radicais, tipo pular do prédio com para-quedas, aliás tudo que fosse relacionado a voar (principalmente se não tivesse motor ou asas envolvidos) era com ele mesmo. O dia de sua morte, não foi diferente até quase no final. Bruno resolveu que ia fazer o pulo. Se tratava de um salto a dois mil metros de altitude de bermuda e meia. Seu companheiro de loucuras, pularia em seguida, filmando tudo. Bruno pularia sem equipamento algum, dependendo exclusivamente do para-quedas de Jonas para sua freada antes de se esborrachar no chão. Bem, os dois pularam, um de frente pro outro, descendo a mais de 100km/h, com os braços bem abertos para não acelerar muito, Jonas olhou para Bruno, deu o sinal combinado para que eles se juntassem de maneira que se abraçariam e Jonas puxaria o para-quedas. Porém, Bruno, com um sorriso de orelha a orelha, foi se afastando de Jonas com uma decisão no olhar que deixou Jonas arrepiado sem saber como fazer para pegar o companheiro que se distanciava cada vez mais da única possibilidade de desacelerar.


 "Acho que não tinha mais o que ser feito para que ele pudesse sentir o barato, aquela queda era o grau máximo de prazer que ele só poderia sentir se fosse até o fim, aquilo não poderia ser parado." Palavras de Jonas na sua entrevista dada para tentar explicar o ocorrido. Segundo ele até hoje sonha com o momento que teve que decidir puxar o para-quedas e se separar do cara que representava tudo  na vida dele desde que eram crianças. Cresceram como irmãos, Jonas nunca teve pais ou qualquer parente que fosse, então os pais de Bruno adotou Jonas quando ele tinha 10 anos.